"Paixão de Cristo"
Trabalho e pesquisa de: Carlos Leite Ribeiro
Quero, ó Cristo, meditar
No teu sofrimento;
Do teu trono vem guiar
O meu pensamento.
Possa eu ver, ó meu Jesus,
Quão atroz tormento
Exigiu na infame cruz
Nosso salvamento.
"Sigmund von Birken, 1626-81"
Os eventos do final da vida de Jesus são reais e históricos, tendo sido relatados pelos Evangelistas Mateus, Marcos, Lucas e João. Nos Evangelhos batizados com seus respectivos nomes, eles descrevem a vida de Jesus Cristo, desde seu humilde nascimento até seu sofrimento injusto e sua morte, coroada por sua gloriosa ressurreição. Eles nos ensinam o verdadeiro significado da vida de Nosso Senhor - o sacrifício por todos os seres humanos de todos os tempos. Com sua morte, todos nós podemos ser perdoados e salvos. Sua ressurreição nos assegura a vitória sobre o pecado, a morte e o diabo.
Por que Jesus derramou Seu sangue na cruz?
"Porque a vida da carne está no sangue. Eu vo-lo tenho dado sobre o altar, para fazer expiação pela vossa alma, porquanto é o sangue que fará expiação [um sacrifício que paga a culpa] em virtude da vida" (Levítico 17.11).
"Com efeito, quase todas as coisas, segundo a lei, se purificam com sangue; e, sem derramamento de sangue, não há remissão [perdão dos pecados]" (Hebreus 9.22).
Por que a crucificação foi tão traumática?
"Certamente, ele [Jesus] tomou sobre si as nossas enfermidades e as nossas dores levou sobre si; e nós o reputávamos por aflito, ferido de Deus e oprimido. Mas ele foi traspassado pelas nossas transgressões [pecados] e moído pelas nossas iniquidades; o castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos sarados" (Isaías 53.4-5).
De quem foram os pecados que pregaram Jesus na cruz?
"Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas; cada um se desviava pelo caminho, mas o SENHOR fez cair sobre ele a iniquidade [pecado] de nós todos" (Isaías 53.6).
A morte brutal de Cristo foi profetizada?
"Como pasmaram muitos à vista dele [Jesus] (pois o seu aspecto estava mui desfigurado, mais do que o de outro qualquer, e a sua aparência, mais do que a dos outros filhos dos homens)" (Isaías 52.14).
Obediência
Por que a crucificação de Cristo foi necessária?
"E do modo por que Moisés levantou a serpente no deserto, assim importa que o Filho do Homem seja levantado [na cruz], para que todo o que nele crê tenha a vida eterna" (João 3.14-15).
O que Jesus quis dizer ao clamar "Está consumado!"?
"Quando, porém, veio Cristo como sumo sacerdote dos bens já realizados, mediante o maior e mais perfeito tabernáculo [templo], não feito por mãos, quer dizer, não desta criação, não por meio de sangue de bodes e de bezerros, mas pelo seu próprio sangue, entrou no Santo dos Santos, uma vez por todas, tendo obtido eterna redenção" (Hebreus 9.11-12).
Jesus é o único caminho para Deus?
"Respondeu-lhe Jesus. Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida; ninguém vem ao Pai senão por mim" (João 14.6).
O que Deus pensou da crucificação do Seu Filho?
"Todavia, ao SENHOR agradou moê-lo, fazendo-o enfermar; quando der ele a sua alma como oferta pelo pecado, verá a sua posteridade e prolongará os seus dias; e a vontade do SENHOR prosperará nas suas mãos" (Isaías 53.10).
Perdão
Qual foi o resultado do derramamento do sangue de Jesus?
"No qual [em Jesus] temos a redenção [resgate da culpa do pecado], pelo seu sangue, a remissão dos pecados, segundo a riqueza da sua graça" (Efésios 1.7).
Por que a crucificação de Cristo é importante?
"Pois também Cristo morreu, uma única vez, pelos pecados, o justo pelos injustos, para conduzir-vos a Deus; morto, sim, na carne, mas vivificado no espírito" (1 Pedro 3.18).
O sacrifício individual de Cristo é suficiente?
"E ele [Jesus] é a propiciação [satisfação da justiça de Deus] pelos nossos pecados e não somente pelos nossos próprios, mas ainda pelos do mundo inteiro" (1 João 2.2).
O sacrifício de Cristo deve ser repetido?
"Assim também Cristo, tendo-se oferecido uma vez para sempre para tirar os pecados de muitos, aparecerá segunda vez, sem pecado, aos que o aguardam para a salvação" (Hebreus 9.28).
Por que a cruz provoca divisões?
"Certamente, a palavra da cruz é loucura para os que se perdem, mas para nós, que somos salvos, poder de Deus" (1 Coríntios 1.18).
As Relíquias da Paixão de Cristo
Como sabem os católicos, assim como todos aqueles interessados na vida e obra de nosso Avatar Jesus, existem um grande número de relíquias relacionadas à paixão de Cristo espalhadas pelo mundo. Número este que chega à casa do milhar.
Qualquer um que tenha uma noção de Sua vida e da Sua Paixão, pode intuir que este número é tão absurdo quanto impossível.
Na Basílica de Saint-Denis, em Argentenil - ao norte de Paris, conserva-se por exemplo, uma suposta "túnica sagrada". E outro tanto ocorre na catedral de Trévaux. Com o devido respeito aos que crêem em ambas as túnicas, é pouco provável que uma delas possa ser a que usou o Mestre Jesus. Na primeira, não obstante as dimensões serem aceitáveis (1.45m de comprimento por 1.15m de largura) e não exibir costuras, o cânhamo nada tem a ver com a natureza das vestimentas usadas habitualmente pelos hebreus à época - que basicamente se utilizavam de algodão, lã e linho. Quanto à segunda, ainda é mais difícil de identificar. Trata-se de uma série de fragmentos de um tecido muito fino e pardacento, envolto e protegido das traças em dois panos. Um destes é de seda adamascada, fabricado possivelmente no Oriente, entre os séculos VI e IX.
Quanto aos cravos e à Cruz de Cristo, ocorre algo ainda mais berrante. Há uma tradição que conta que a Imperatriz Santa Helena desenterrou os cravos utilizados para prender O Cristo à Cruz no século IV. Segundo esta lenda, a Imperatriz teria mandado confeccionar um freio para o cavalo de seu filho com um dos cravos (que se encontra hoje em Carpentras).
Com outro fez um círculo para o capacete de Constantino, e diz-se que este círculo faz parte hoje da coroa de ferro dos reis lombardos, em Monza.
O terceiro cravo teria servido para acalmar uma tempestade no mar Adriático... O caso é que na atualidade, em diversas igrejas da Europa, se veneram supostos cravos da Paixão de Cristo, totalizando dez(!) destes. Surpreendente, se partirmos do suposto que eram quatro os cravos para prender os crucificados - um em cada pulso e um em cada pé. Outros se encontram em Veneza, Trévaux, Florença, Sena, Paris e em Arras.
O mesmo ocorre com respeito à madeira da Cruz de Jesus. Existem pedaços da Cruz de praticamente todos os tamanhos. Todas, é claro, extraídas da verdadeira Cruz. Talvez o maior fragmento seja o que se encontra na Espanha - em São Toríbio de Liébana, na província de Santarém, ao norte. A tradição afirma que este lignum crucis foi levado de Jerusalém por São Toríbio, bispo de Astorga, na Espanha, e contemporâneo de São Leão I, o Grande. Sua autenticidade nunca foi comprovada...
Se pararmos para pensar sobre esta tradição, veremos que tende ao absurdo imaginar que os soldados perdessem seu tempo enterrando os cravos e as cruzes utilizados em cada execução, como pretendem alguns exegetas em defesa da história da mencionada mãe do Imperador Constantino. De fato, é mais provável que as cruzes e os próprios cravos fossem re-utilizados em diversas execuções.
Particularmente, acho que isso é "providencial". Tenho comigo o sentimento que o Filho do Homem não queria - nem gostaria - que objectos Seus fossem venerados ao longo dos tempos. Jesus veio à Terra como um Mensageiro - Mensageiro da Paz e do Amor - e sofreu por nós. Infelizmente não estávamos preparados para receber e assimilar estas mensagens à época (e a pergunta fica: e se tudo acontecesse agora, será que estaríamos prontos?...).
Ao invés de ficarmos venerando objectos materiais que podem ou não ter pertencido a este Espírito Iluminado, devíamos única e exclusivamente nos preocupar em praticar seus ensinamentos.
Na Semana Santa celebram-se os mistérios da salvação operada por Jesus nos últimos anos da sua vida na terra, desde a entrada triunfal em Jerusalém, até à sua sacratíssima Paixão e gloriosa Ressurreição. A Semana Santa contém os factos centrais da vida de Jesus, aquilo que Ele definiu como a “Sua Hora”.
A antiga liturgia de Milão classificava esta Semana Autêntica por ser a semana dos verdadeiros “trabalhos de Jesus”. O anterior Missal romano chamava-lhe Semana Maior, não pelo número de dias, mas pelo conteúdo salvífico.
O conjunto das celebrações da Semana Santa forma o Mistério Pascal, revelador da plenitude do amor de Deus ao mundo. As cores litúrgicas são a roxa, a encarnada e a branca, cores do amor e dor como o duplo sentido da paixão.
A tarde de Sexta-feira Santa apresenta o drama imenso da morte de Cristo no Calvário. A cruz erguida sobre o mundo segue de pé como sinal de salvação e de esperança. Com a Paixão de Jesus segundo o Evangelho de João contemplamos o mistério do Crucificado, com o coração do discípulo Amado, da Mãe, do soldado que lhe traspassou o lado.
São João, teólogo e cronista da paixão nos leva a contemplar o mistério da cruz de Cristo como uma solene liturgia. Tudo é digno, solene, simbólico em sua narração: cada palavra, cada gesto. A densidade de seu Evangelho agora se faz mais eloquente. E os títulos de Jesus compõem uma formosa Cristologia. Jesus é Rei. O diz o título da cruz, e o patíbulo é o trono onde ele reina. É a uma só vez, sacerdote e templo, com a túnica sem costura com que os soldados tiram a sorte. É novo Adão junto à Mãe, nova Eva, Filho de Maria e Esposo da Igreja. É o sedento de Deus, o executor do testamento da Escritura. O Doador do Espírito. É o Cordeiro imaculado e imolado, o que não lhe romperam os ossos. É o Exaltado na cruz que tudo o atrai a si, quando os homens voltam a ele o olhar.
A Mãe estava ali, junto à Cruz. Não chegou de repente no Gólgota, desde que o discípulo amado a recordou em Caná, sem ter seguido passo a passo, com seu coração de Mãe no caminho de Jesus. E agora está ali como mãe e discípula que seguiu em tudo a sorte de seu Filho, sinal de contradição como Ele, totalmente ao seu lado. Mas solene e majestosa como uma Mãe, a mãe de todos, a nova Eva, a mãe dos filhos dispersos que ela reúne junto à cruz de seu Filho.
Maternidade do coração, que infla com a espada de dor que a fecunda. A palavra de seu Filho que prolonga sua maternidade até os confins infinitos de todos os homens. Mãe dos discípulos, dos irmãos de seu Filho. A maternidade de Maria tem o mesmo alcance da redenção de Jesus. Maria contempla e vive o mistério com a majestade de uma Esposa, ainda que com a imensa dor de uma Mãe. São João a glorifica com a lembrança dessa maternidade. Último testamento de Jesus. Última dádiva. Segurança de uma presença materna em nossa vida, na de todos. Porque Maria é fiel à palavra: Eis aí o teu filho.
O soldado que traspassou o lado de Cristo no lado do coração, não se deu conta que cumpria uma profecia: realizava um último, estupendo gesto litúrgico. Do coração de Cristo brota sangue e água. O sangue da redenção, a água da salvação. O sangue é sinal daquele maior amor, a vida entregue por nós, a água é sinal do Espírito, a própria vida de Jesus que agora, como em uma nova criação derrama sobre nós.
A SEMANA SANTA EM BRAGA
Braga (Minho – Portugal) Santuário Bom Jesus do Monte e Catedral
As cerimónias da Semana Santa, em Braga, começam com a tradicional Benção dos Ramos e a Procissão do Senhor dos Passos. A cidade vive, sete dias de intensa actividade religiosa, com os tradicionais ritos e procissões, que culminam no Domingo de Páscoa, a atrair muitos milhares de fiéis e de turistas. Os visitantes são sobretudo atraídos pelas grandes procissões que registam a participação de centenas de figurantes vestidos a rigor para simbolizar o calvário de Cristo. Será o caso, por exemplo, da tradicional procissão de Nossa Senhora da «burrinha», que incorpora cerca de setecentos figurantes. Na quinta-feira à noite, decorre a procissão de «Ecce Homo» e, na Sexta-feira Santa, a solene Procissão do Enterro do Senhor, talvez a mais aguardada pelos turistas. Já no Domingo de Páscoa, o tradicional compasso percorre as aldeias, vilas e cidades minhotas.
Com tradições que remontam aos primórdios do século, a Semana Santa em Braga é o expoente máximo das solenidades pascais do país e do norte da Península Ibérica. Durante uma semana, a cidade de Braga acolhe milhares de peregrinos oriundos de todo o país e da vizinha Galiza, para participar numa das manifestações que constitui um dos mais notáveis cartazes do turismo religioso.
Os archotes, as velas e os milhares de pessoas que se dispõem ao longo das ruas para ver passar as procissões, em especial as do Senhor Ecce-Homo e do Enterro do Senhor, configuram um quadro ímpar das festividades e transmitem uma tradição enraizada num ritual dominado pelo conjunto de procissões nocturnas envoltas numa forte intensidade dramática.
A procissão de Endoenças, também conhecida por procissão do Senhor da Cana Verde ou mais popularmente conhecida como procissão do Senhor Ecce-Homo, tem lugar na noite de Quinta-Feira Santa. Com origens na visita que outrora se efectuava às sete igrejas, inspirada nas Sete Estações Romanas, que, como reza o Compromisso Cerimonial da Santa Casa da Misericórdia de Braga, reflectia «a penitência aos fiéis cristãos que reconheceram seus pecados, e por eles quiseram fazer alguma satisfação penal nos dias em que o mesmo Filho de Deus quis pagar por nós derramando Seu precioso sangue».
Quem chamou a si a realização desta procissão foram, por isso, as Santas Casas da Misericórdia, instituídas em Portugal pela rainha D. Leonor, em 1498. Ainda hoje, é a estas instituições que cabe a tarefa de promover e organizar esta solenidade e por isso considerada a Festa da Irmandade, à qual todos os irmãos eram então obrigados a assistir. O papel desempenhado outrora pelos irmãos foi hoje parcialmente substituído pelo figurado que integram o cortejo religioso.
Na cidade de Braga, a procissão da noite de Quinta-Feira Santa tem como figura central a imagem do Senhor Jesus Cristo coroado de espinhos, com as mãos atadas, segurando um ceptro, figurado numa cana verde.
Esta procissão, pelas suas características, é uma das solenidades da Semana Santa mais participada pelos bracarenses e por muitos milhares de fiéis de todo o país e da vizinha Galiza que nesta noite "invadem" a cidade de Braga para assistir.
No dia seguinte, na Sexta-Feira Santa, é a vez de se realizar a procissão do Enterro do Senhor. Este cortejo religioso é o mais solene de todos os que na Semana Santa se organizam. Os mesários e irmãos da Misericórdia e Santa Cruz, encapuzados, as varas a rasto, os Reverendo Cónegos com os mantos e varas arrastados pelos lajedos, os figurados, também arrastando as cruzes, como os pendões, bandeiras das congregações, juizes com varas, provocam como que um gemido de consternação, tal é a impressão que o "surdo" arrastar das varas nos provoca. De longe a longe, este sussurro é quebrado pelo som entoado por uma personagem que segue o Esquife do Senhor: «Heu Heu Damine Heu Salvador noster! (Ai! Ai! Senhor Salvador Nosso!).
O rugir das matracas dos farricocos, o bater das varas dos irmãos da misericórdia que se ouvem na procissão da Quinta-Feira Santa, dão lugar a um silêncio avassalador na procissão do Enterro do Senhor. O cortejo religioso sai da Sé Catedral, a onde regressa depois de percorrer as principais artérias do centro da cidade.
(Excerto da Obra)
Da especificidade da música sacra portuguesa nos séculos XVI e XVII
José Maria Pedrosa Cardoso
Universidade de Coimbra
Música da Paixão. E vou aproveitar o mesmo documento de Mogi das Cruzes para introduzir uma nova temática, porventura o traço mais profundo na identidade de uma música sacra portuguesa no princípio da era moderna. Na realidade o achado de Jaelson Trindade, já estudado por Paulo Castagna, apresenta também um trecho de música da paixão, mais concretamente três espécimes com Turbas da Paixão segundo S. Mateus e segundo S. João. Este dado não tem nada de supreendente, uma vez que se trata de uma prática universal, mas o reconhecimento nesta espécie polifónica do Cantus firmus tradicional português constitui, definitivamente, um documento a comprovar a dependência natural da música litúrgica brasileira da sua congénere portuguesa. [Efectivamente, na parte do Tiple das Turbas de Mt, aparece no meio das frases polifónicas a reprodução de duas frases gregorianas – os chamados ditos da ancilla: Et tu cum Jesu Nazareno eras e Et hic erat cum Jesu Nazareno - com a música rigorsamente igual à do modelo tradicional português. O mesmo vai acontecer na parte do Tiple das Turbas de Jo, com transcrição da frase novamente da ancilla Nunquid et tu ex discipulis es hominis istius? Independentemente do valor da composição em causa, da sua autoria, sabendo-se que se trata muito provavelmente de uma cópia setecentista de uma composição anterior, o importante é constatar que no Brasil colonial o modelo de cantochão utilizado para o canto da Paixão era o tradicional português.
Igualmente importante é a constatação de que, numa destas espécies de Turbas, se encontram algumas frases de Cristo musicadas a várias vozes (sendo o Ms incompleto, não foi possível, em primeira análise, deduzir a quantas vozes eram essas frases musicais). De qualquer forma, estamos diante de documentos que testemunham uma dependência natural da prática cultual brasileira dos modelos importados directamente de Portugal, e não da Europa genericamente como é frequente afirmar-se.
Regressando, pois, a Portugal, sabe-se que a Semana Santa era o tempo privilegidado para todas as devoções. Entre o reportório próprio deste tempo, sobressai o canto do Ofício das Trevas, com os célebres responsórios e lamentações, os cânticos das procissões, com o impresionante Heu, heu Domine durante o enterro do Senhor, e o canto litúrgico da Paixão (entendendo-se, assim, o canto do texto canónico durante a celebração das missas de Domingo de Ramos, Terça e Quarta Feira Santas e na celebração litúrgica da Morte do Senhor, na Sexta Feira Santa). Não havia vilancicos, não se representavam dramas litúrgicos, que o drama da Paixão e Morte de Cristo era suficientemente galvanizador para reter os fiéis longas horas nas igrejas, embora de uma forma muitas vezes passiva: mais uma razão para o poder motivador de uma boa execução musical.
A este propósito, também vale a pena chamar a atenção para o impacto que a celebração da Paixão, sobretudo na Sexta Feira Santa, despertou nas primitivas comunidades cristãs brasílias. As cartas dos primeiros Jesuítas no Brasil são bom documento a este respeito. Apenas um exemplo:
«12. O oficio da Semana Santa se fez nesta nossa Casa com grande devação dos que a ele se acharão; forão cantados, os quaes o Padre Brás Lourenço fez muito bem, tomando pera isso os moços da escola, que ensayou alguns dias antes, e outras pessoas devotas, que se lhe offerecerão pera isso.... Pregou-se a Paixão com muita devação e sentimento e lágrimas dos ouvintes, e certifico-lhes que nunqua vi tantas lágrimas em Paixão como vi nesta, porque des ho principio até ao cabo foi huma continua grita, e não avia quem pudesse ouvir o que o Padre dizia; e isto assim em homens como em molheres, e sairão algumas cinquo ou seis pessoas quasi mortas, as quaes por muito espaço não tornarão em sy e outras com medo do mesmo não a ousarão de esperar toda a preguação, por mais que o Padre abreviava com ver estas cousas. ... A sexta-feria seguinte se fez o officio do desenterramento do Senhor com o mesmo sentimento, e devação, levando dous Padres vestidos com suas alvas e descalços ao Santissimo Sacramento em huma tumba toda cuberta de preto que pera isso era feita, indo diante as Tres Marias, cantando Heu, Heu, Salvator noster» ( Porto Seguro 15 de Fevereiro de 1566, Carta do P. Antonio Gonçalves aos Padres e Irmãos de Portugal, in Serafim Leite, Monumenta Brasiliae. Roma: Monumenta Historica Societatis Jesu, 1956-1960, 4 vols, IV vol. (1563-1568), pp. 315-318).
A explicação histórica para tal entusiasmo na vivência do drama da Paixão, na Semana Santa, só pode estar numa espiritualidade da Cruz profundamente enraizada na sociedade portuguesa, o que pode derivar da presença qualificada das Ordens mendicantes, da propagação em Portugal da devotio moderna e da mentalidade dos Místicos do Norte, da divulgação da Via-sacra, etc. Consequência e estímulo para esta mesma espiritualidade é a proliferação por todas as igrejas e capelas portuguesas de grandes obras de arte - concretamente em quadros, pietás e calvários - e ainda a abundância de edições da Imitação de Cristo e de publicações sobre a vida de Cristo e concretamente sobre a Paixão do Senhor.