Caro
Demerval:
A cruz é o símbolo mais usado
por nós, cristãos. A vemos em toda parte. Temos
cruzes em nossas Igrejas, externa e internamente, as fixamos
em nossas casas, em nossos ambientes de trabalho, nos hospitais,
nas escolas e até as penduramos, ostensivamente, em
nossos pescoços...
Mas será que já paramos um
dia diante da cruz para meditarmos na força de sua
mensagem e daí tirarmos algumas lições
para as nossas vidas? Neste tempo forte da Quaresma, da Semana
Santa e da Páscoa eu procuro refletir um pouco mais
sobre o Mistério da Cruz e, mais uma vez, humildemente,
gostaria de partilhar as minhas reflexões com pessoas
amigas e queridas, como você, pelas quais tenho um carinho
e uma admiração especial.
Você, caro Demerval faz parte deste
grupo, e, por esta razão, estou enviando-lhe este email.
Que ele possa ser útil à você nesta sua
caminhada aqui neste mundo!
Kater Filho
A LIÇÃO DA CRUZ
Anualmente,
durante a Semana Santa – e também no tempo Pascal
- procuro me debruçar sobre este grande mistério
da Trindade: o sofrimento voluntário e a morte de Jesus
na cruz, com a aquiescência do Pai, oferecidos para
a Salvação da humanidade. O faço na tentativa
de extrair, deste gesto, lições para a nossa
vida de cristãos neste mundo volúvel, insensível
e cruel.
Naturalmente, não tenho a pretensão
de comparar-me a tantos outros teólogos, sábios
e santos que, no passado, fizeram o mesmo, com muito mais
profundidade, inspiração e sabedoria, nos deixando
incontestáveis reflexões sobre as suas meditações,
porém posso, sem medo de errar, afirmar que, acima
de tudo, a cruz, paradoxalmente, é uma aula de amor.
Sim, amigos e amigas, a maior lição
que extraímos da cruz é a do amor; um amor demonstrado
na prática por gestos únicos de entrega, resignação
e dor. Amor que teologicamente denominamos de amor ágape:
o amor supremo, incondicional, irrestrito, sem limites e particularmente
inesgotável, pois, como conclui Paulo,
decodificando-o em sua 1ª Carta aos Coríntios:
“O amor jamais acabará”. I Cor
13, 8.
Tendo em vista o ódio, a violência
e as maldades que, todos os dias, são despejados em
nossos lares pelos meios de comunicação, penso
ser salutar, nos contrapondo às tendências do
mundo, voltar os nossos olhos e pensamentos para a cruz de
Jesus, nos propondo a refletir sobre a necessidade de reagirmos
a tudo isso com o amor que dela emana.
Assim, eu gostaria de falar-lhes hoje sobre
o amor, este dom gratuitamente recebido por nós de
Deus, ao nos conceber à Sua imagem e semelhança.
Costumo afirmar, em minhas pregações, que uma
de nossas principais semelhanças com Deus é
esta: a nossa inesgotável capacidade de amarmos,
independentemente de sermos reciprocamente amados!
Este inexaurível potencial de amor,
inato no ser humano, que pode (ou não) crescer, desenvolver-se
e frutificar ao longo de nossas vidas, é o único
responsável pela bondade, pela caridade, pela solidariedade,
pela misericórdia e pela paz que ainda sobrevivem neste
mundo tão mau que, às vezes, nos faz perder
a paciência, a fé e a esperança de dias
melhores.
Quando vejo mulheres defendendo seu “livre”
direito ao aborto, alegando-se donas de seus corpos, penso
imediatamente nas mães que consomem suas vidas inteiras
- incluindo sua saúde e os seus direitos ao descanso
e aos prazeres – para cuidar diuturnamente de filhos
que nascem, “vivem” e morrem com sérios
e irreversíveis problemas de saúde. É
no testemunho destas mães que reavivo em meu coração
a força do amor, comparando os atos delas ao de Jesus,
no calvário e na cruz.
Da mesma forma, quando ouço políticos
e autoridades defendendo a pena de morte para tantos delinqüentes
que só chegaram a esta condição por causa
das bebidas e das drogas que são livremente comercializadas
pela sociedade, volto o meu olhar para as casas de acolhida
a dependentes - alguns cujas próprias famílias
já desistiram da sua recuperação - e
observo a abnegação e a paciência de seus
voluntários e voluntárias na tentativa, diria
quase impossível, de resgatar estas criaturas de Deus
totalmente desfiguradas pelos vícios. Os gestos gratuitos
destas pessoas me fazem lembrar a força do poder do
amor que exala da cruz para todos os homens e mulheres.
Quando vejo a inexorável ganância
de tantos grupos a consumir, vorazmente, as nossas reservas
naturais, não hesitando expulsar e matar covardemente
os pequenos que se atrevem a se antepor em seus caminhos,
contemplo os religiosos, religiosas e leigos verdadeiramente
missionários, que enfrentando perigos, distantes dos
avanços da civilização e do conforto
moderno, arriscam suas vidas, para os defenderem. Nestes mártires
modernos vejo o mistério da cruz sendo atualizado para
os dias de hoje.
Assim eu poderia enumerar aqui tantas e tantas
outras atividades solidárias e filantrópicas
junto a fetos, crianças, deficientes, idosos, pacientes
terminais, presidiários e tantos miseráveis
cujas vidas não são levadas em conta por uma
sociedade pragmática e insensível, para nos
certificarmos de que o amor vivenciado na cruz ainda perdura
na terra.
É
salutar percebermos este gesto de amor - aparentemente inusitado
e único - do Filho de Deus pela humanidade, atualizado
diariamente no mundo por meio de tantas criaturas, criadas
à imagem e semelhança de Deus, que em suas atividades
refletem este amor ensinado a nós por Jesus.
Um amor dado, gratuita e indistintamente,
a pessoas que dele necessitam, mas que, ao mesmo tempo, não
espera nada em troca, nem ao menos gratidão. Assim
é o amor de muitos pais e mães, voluntários
e voluntárias, religiosos e religiosas, médicos
e enfermeiras e tantos outros abnegados que vivem e morrem
em função dos mais necessitados.
Pessoas que seguem o mandamento de Jesus
que nos disse: “Amai-vos uns aos outros como
eu vos amo. Ninguém tem maior amor do que aquele que
dá a vida por seus irmãos”. Jo 15, 12-13.
Este amor, não percebido pela maioria dos homens e
mulheres de hoje - porque é dado no silêncio
e no anominato - é a raiz da esperança que cultivamos
por um mundo melhor.
Não nos enganemos, amigos e amigas,
nem nos deixemos contagiar por sentimentos de revide, acreditando
que combateremos e venceremos o mal com o mal, como nos propõem
tantos segmentos da sociedade. Só venceremos
o mal contrapondo a ele o amor, como fez Jesus na cruz.
São Paulo, na carta aos Romanos, sintetiza
o poder do amor que emana da cruz sobre o mal dizendo: “Não
pagueis a ninguém o mal com o mal. Aplicai-vos a fazer
o bem diante dos homens. Se for possível, quando depender
de vós, viveis em paz com todos os homens. Não
vos vingueis uns aos outros; não te deixes vencer pelo
mal, mas triunfa do mal com o bem”. Rom 12, 17 –
19. 21.
Não te deixes vencer pelo
mal, mas triunfa do mal com o bem, ora diante desta
frase alguns poderiam retrucar: mas, afinal chega certa hora
que nos esgotamos e diante de tanta maldade, iniqüidade
e injustiças o nosso amor acaba, dando lugar à
indiferença, ao revide e ao rancor.
Enganam-se, amigos e amigas, aqueles que
afirmam que o amor um dia se esgotará em nós,
pois o amor, como afirma São Paulo, jamais acabará!
O amor que emana da cruz é inesgotável e se
permitirmos que ele cresça e se desenvolva em nossos
corações ele nunca cessará de jorrar,
como uma fonte de água viva, pois assim disse Jesus:
“Quem crê em mim, como diz a Escritura,
do seu interior manarão rios de água viva”.
Jo 7, 28.
Mais uma vez nos voltemos à cruz para
observarmos a conduta de Jesus diante da dor, das injustiças,
das falsas acusações, da covardia, da violência
e da morte. Em Seu calvário, desde Sua prisão,
ocorrida diante da traição de um de seus amigos,
até o Seu último grito, antes de entregar Seu
espírito ao Pai, arrancam d’Ele tudo o que é
possível de ser arrancado.
Tiram-lhe a liberdade, a dignidade, os direitos,
as vestes, e aquilo de valor que não Lhe é tomado,
Ele, segundos antes de expirar, livre e espontaneamente, entrega
à humanidade: Sua própria mãe, “João
eis aí a sua mãe” e Sua vida,
“Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”!
Só não conseguem tirar de Jesus
a Sua capacidade de amar, dom que Ele, assim como nós,
recebeu de Deus Pai para ser exercido nesta terra!
Sim, amigos e amigas, Jesus, no calvário
e na cruz, abre mão de tudo o que Lhe foi dado pelo
Pai, só não abre mão de Sua capacidade
de amar, por isso “amou aos seus que estavam
no mundo até o fim”. Jo 13,1.
Amou a todos verdadeiramente até o
último suspiro de Sua vida, inclusive àqueles
que O traíram, O condenaram, O flagelaram, O caluniaram,
ao interceder por eles na cruz, suplicando ao Pai: “Perdoa-lhes
porque não sabem o que fazem”. Lc 23, 34.
Quando tenho a oportunidade de visitar pacientes
em estado terminal, atrelados a um leito de dor, sem se locomover,
enxergar, ouvir, comer ou mesmo falar, observo - particularmente
naqueles que ao longo da vida creram em Jesus Cristo e em
Seus ensinamentos - que a única coisa que não
lhes conseguem tirar, a exemplo do Mestre, é sua capacidade
de amar.
Quantas vezes, ao visitar enfermos neste
estado, para levar-lhes a Eucaristia e na pretensão
de consolá-los com minhas pobres palavras, eu saio
de lá consolado, ao ver o amor jorrando daquela criatura
- já quase sem vida, como Jesus na cruz - na direção
de todos, sem distinção.
Assim, nesta Páscoa, quero exortar
você a reavivar o dom de amar que existe em seu coração,
não importando quais e quantas dificuldades você
esteja enfrentando atualmente. Saiba que tudo, um dia, de
uma maneira ou de outra, poderá lhe ser tirado, com
exceção desta sua capacidade de amar, se você
permitir que ela cresça e se desenvolva em seu coração.
O amor que aqui cultivamos e generosamente
repartimos - gratuita e desinteressadamente uns para com os
outros - é o único dom, que de Deus recebemos,
que um dia levaremos conosco para a eternidade! Tudo mais
- sem exceções – por aqui ficará,
só restando o amor por nós derramado.
Por isso, amigos e amigas, vamos nos amar
intensamente e sem restrições, pois isto é
verdadeiramente o que restará de todos nós.
Lembre-se disso, todas as vezes que você se deparar
com uma cruz!
Feliz Páscoa!
Antonio Miguel Kater Filho
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